
Eder Jorge P. Ribeiro
Terapia Relacional Sistêmica
Formação e Experiência Profissional
Terapeuta familiar, de casal e individual com formação no Instituto de Terapia Familiar de São Paulo - ITFSP.
Membro da equipe de trabalho do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo – ITFSP, de 2010 a 2013.
Supervisor de Atendimento pelo ITFSP em 2014.
Cientista Social, formado pela PUC-SP.
Participações em Palestras
Marilene Grandesso – Terapia Colaborativa – Uma Prática Centrada no Diálogo
Tai Castilho - Migração e Família
Dr. Carmine Saccu - Autor de "O Casal em Crise" - Ouvindo e Vendo – O Trabalho com Metáforas - Crianças, Adolescentes e Famílias
Elizabeth Politti - Qual o Lugar do Terapeuta Familiar nos Casos de Reprodução Assistida
Paulo Fernando Pereira - Terapia com Famílias de Adolescentes
Helena Maffei Cruz - Terapia Familiar com Crianças
Cecília Cruz Villares - Terapia de Família e Transtorno Mental
Naira Morgado e Neyde Bittencourt de Araujo - Uma Ferramenta de Escuta Clínica: O Enlace do Terapeuta a Partir do Discurso do Cliente
Lana Harari - Relação Mãe e Filha: Aportes da Psicanálise e da Teoria Relacional Sistêmica
Cristiana Pereira - Perdas e Luto na Família
Flora Auron, Tai Castilho, Marilene Grandesso, Maria Lucia Martinelli, Paulo Fernando Pereira de Souza, Dr. Reinaldo Cintra e Walkyria Acquesta - Construindo Pontes Sociais: Trabalho Com Famílias em Situação de Vulnerabilidade
Maher Hassan Musleh – O Vitimizador Sexual
Regina Politi - O Que Tem Trazido os Casais ao Consultório
Rosana Galina - A Dança Trigeracional
Natalia Joelsas Timerman - Noções Básicas de Psicopatologia - Uma Aproximação
Fenomenológico-Existencial
Paulo Fernando Pereira - Diálogos Entre a Psicanálise e a Terapia Familiar
Paula Ayub - Diversidade, Limites e Expectativas - Trabalhando Famílias com Crianças e Jovens que
Apresentam Deficiência
Renata Bernhoeft - Um Olhar Sistêmico Sobre o Trabalho com Empresa Familiar
Valéria Meirelles - Questões de Dinheiro na Dinâmica do Casal e Família
Cirilo Tisso - Trabalhando as Famílias dos Jovens Envolvidos com Droga e Álcool
GUY AUSLOOS
POR UMA PRÁTICA PÓS-MODERNA
EDER JORGE PAIVA RIBEIRO
FORMAÇÃO EM TERAPIA DE CASAL E FAMÍLIA
ORIENTAÇÃO – CRISTIANA PIRES GONÇALVES PEREIRA
ÍNDICE
INTRODUÇÃO, 4
GUY AUSLOOS – O PERSONAGEM, 5
PRINCIPAIS CONCEITOS DE “A COMPETÊNCIA DAS FAMÍLIAS”, 8
O Tempo, 9
O Caos, 12
O Processo, 21
UM EXEMPLO DA NOSSA PRÁTICA, 23
CONCLUSÃO, 31
BIBLIOGRAFIA, 36
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo apresentar e discutir possíveis caminhos na implementação de uma prática terapêutica pós-moderna na clínica atual. A partir de uma perplexidade natural, provocada pela leitura do trabalho de Guy Ausloos, passei a me questionar em que medida os procedimentos e técnicas que conhecia e vinha implementando até então eram os mais adequados para atingir metas que considero ideais, como por exemplooferecer a possibilidade de maior autonomia terapêutica e, assim espero, maior autonomia de vida aos clientes, de forma que as mudanças possam ser mais profundas e duradouras.
Uma vez que o eixo central do trabalho é constituído por conceitos de Guy Ausloos, começo apresentando sua obra “A Competência das Famílias” de um ponto de vista pessoal, conduzido por minha empatia por sua figura para, em seguida, abordar e esclarecer os pontos que considero mais úteis para a discussão de nossa ação concreta como terapeutas. Ao fazê-lo, aproveito oportunidades para introduzir contribuições significativas para a discussão através de importantes vozes como as de Harlene Anderson, Gianfranco Checchin, Gerry Lane, Wendel Ray e Rosana Rapizo. Introduzo também experiências pessoais como palestras assistidas, vivência como terapeuta e como aluno do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo.
De que forma podemos ajudar nossos clientes a desenvolver sua autonomia decisória? De que forma podemos estabelecer uma maior coerência entre nossa teoria e nossa prática? De que forma podemos atuar para que não nos percamos nas diversas "máscaras de poder" que nos oferece a situação terapêutica? Creio que, embora não expressamente formuladas, essas sejam preocupações centrais de Guy Ausloos. Caso contrário, que sirva o presente trabalho à reflexão desses preceitos.
GUY AUSLOOS – O PERSONAGEM
A “Competência das Famílias” de Guy Ausloos só me chegou às mãos após três anos de formado. A obra não fazia parte da bibliografia básica do curso de Terapia Familiar, mas era frequentemente citada como leitura de grande importância. O livro consiste num apanhado de artigos organizados de maneira cronológica, mas sem articulação formal. Ausloos não gosta de escrever, diz. O faz apenas quando tomado pela extrema urgência de comunicar coisas em que acredita. Viva a ansiedade! As coisas que diz são importantíssimas e, para quem não gosta de escrever, escreve muito bem.
Jean-Claude Benoit, no prefácio à edição francesa, nos conta, não sem ruborizar, imagino, que o livro só saiu porque ele, Jean, pode aproveitar-se de um momento de fragilidade do autor durante uma de suas passagens pela França. Ausloos, tomado por forte gripe, viu-se na impossibilidade (ainda bem?) de se levantar da poltrona de um café de uma estação de trem e esquivar-se da proposta de organização definitiva do material em livro. Acabou por ceder e, do aparente caos de textos produzidos durante anos de experiências clínicas, palestras, cursos, conferências, acabou nascendo um dos trabalhos mais ricos na área da terapia familiar que até hoje tive o prazer de conhecer.
Uma das principais dificuldades que enfrentamos em nosso trabalho é a conciliação entre teoria e prática. É muito comum em nossas experiências clínicas observarmos, tanto em terapeutas experientes como naqueles em início de carreira, atitudes que pouco se assemelham ao discurso teórico.
A maneira mais corriqueira de transmissão do conhecimento teórico acontece por intermédio de algum especialista (numa aula expositiva ou num livro), que nos apresenta um tema sobre o qual estudou durante algum tempo e que, agora, possui algumas certezas. A coisa geralmente se dá de maneira vertical, fluida, compassada, científica, nos deixando a sensação de que tudo foi dito, visto, pensado e repensado e o que temos a fazer é acreditar, deixar que essas novas informações nos influenciem e transformem, de alguma maneira, crenças velhas em novas. Ao compreender e aceitar como fato os novos caminhos que o raciocínio nos sugere, poderíamos imaginar que não haveria grande esforço em transformar o pensado em ação. Seria como que uma decorrência natural.
Com Ausloos não é diferente. Apesar de lido, citado e recomendado, a aplicação expressa de suas ideias ainda é vista com pouca frequência. Não que seja o desejo do autor. Já na introdução de seu livro profetiza a desatualização de suas ideias em no máximo 20 anos, além de expressar seu mais profundo desejo de que o texto nunca seja tomado como doutrina. Tampouco, espera-se, seja este o desejo de quem o lê hoje em dia, pois que um manual nunca foi o melhor instrumento do qual um terapeuta pôde lançar mão.
Duas questões, então, se colocam: Qual contribuição uma obra como essa ainda pode nos oferecer e quais as dificuldades enfrentadas em sua aplicação? As duas perguntas surgem em sequência, não por mero acaso, mas sim porque merecem a mesma resposta. O Título que Ausloos dá ao seu livro já nos sugere uma ideia genial ao mesmo tempo que um grande desafio em termos práticos. Genial, porque simples. Quem mais, a não ser a própria família, tem competência suficiente para cuidar de si? Não é ela a principal interessada em sua saúde? Quanto à dificuldade prática: seria a família mais “resistente” (como se costuma afirmar) quanto a sua melhora do que o terapeuta em abrir mão de sua posição de especialista e dono de uma visão privilegiada do problema do outro?
Durante o processo de atendimento, as possibilidades que temos para dizer aos clientes o que devem fazer são inúmeras. E a tentação é muito grande, pois geralmente é o próprio cliente que o exige! “O que sugere?”, perguntam com frequência. E nós, geralmente, aceitamos a demanda com naturalidade, deixando que o nosso pós-modernismo, cultivado em anos de leitura, diálogos, estudo seja vilmente assaltado por uma espécie de espírito Super-Nanny, grande entidade protetora das famílias em dificuldade. As frases variam de: “Você deve dar mais limites ao seu filho” a “Como você acha que um pai deve agir nessa situação?”, dependendo do nível de comprometimento que o terapeuta tem com a cibernética de segunda ordem. Mas ambas já carregando a ideia de que o que “falta” na família é função paterna.
Para que a aplicação prática do que Ausloos nos propõe seja possível, é necessário abrir mão de crenças muito caras a nós. As ideias de previsibilidade, causalidade, objetividade, que convivem conosco no dia a dia, nos auxiliam enormemente em situações práticas, mas demoramos muito tempo para entender que estas, aplicadas às relações humanas, não só não ajudam como atrapalham, inibindo olhares mais amplos, abertos, fundamentais para nossas pretensões enquanto terapeutas. Afinal, quem pode, em sã consciência, determinar, por exemplo, consequências diretas da ausência de um pai ou de uma mãe na formação dos filhos? Ou estabelecer uma relação linear causal entre uma mãe depressiva e um filho suicida? Esquecendo-se do contexto em que as coisas se dão, da nossa participação na construção do diagnóstico, da relação complexa existente entre esses fenômenos.
Ausloos afirma crer com grande veemência em suas ideias (pois não é o que o leva a escrever?), mas questiona a possibilidade de suas crenças caberem numa teoria.
Veremos que Ausloos crê, mas não cria verdades.
Ele:
... acredito no que digo, ou melhor, tenho crenças: acredito no altamente imprevisível humano – logo, imprognosticável – que não pode ser reduzido às teorias que tento encerrá-lo, acredito na competência das famílias para atravessar inúmeras eventualidades com as quais são confrontadas, maravilho-me incansavelmente com as criações caóticas da vida.[1]
... Do leitor espero que não acredite em mim, para que se ponha ele próprio a crer, a criar, a inovar e a tornar efêmero aquilo que acaba de ler. E que, por sua vez, se ponha a crer sem crer naquilo em que crê, mas com convicção, audácia, temeridade, para que mudem as ideias recebidas, para que desapareçam as doutrinas, para que a arte se torne o motor das nossas inter-relações.[2]
Está claro, portanto o tamanho do desafio. Pois que, enxergar a teoria como algo redutor, crer sem crer, tornar efêmero o que lê, aceitar o imprevisível, apostar no imprognosticável, no caos que nos governa, não são lá atitudes simples para quem vive em busca de cientificidade. Mas perceba que, aceitar o que Ausloosnos propõe ainda em teoria já é meio caminho andado para uma prática pós-moderna. E não é o que vivemos nos propondo enquanto cientistas novo-paradigmáticos? Ampliação do foco, abertura, sensibilidade, aceitação do processo, da auto-organização, da causalidade circular etc.
O desafio seria suficiente se parássemos por aí, mas Ausloos vai além, quando estabelece como condição para a mudança a criatividade, elevando a condição do terapeuta à de não menos que um artista.
Mas não nos preocupemos, pois veremos adiante que as condições para o estabelecimento de maior coerência entre nossa teoria e prática passam mais pelo que devemos desaprender do que aprender. E, em teoria, isso é mais fácil! Além do que, me tranquiliza o fato de Ausloos afirmar pertencer a uma tal “Sociedade Protetora do Terapeuta”.
Quero, então, acreditar que exista uma e, portanto, não estamos tão sós!
PRINCIPAIS CONCEITOS DE “A COMPETÊNCIA DAS FAMÍLIAS”
Não são nossas teorias, frequentemente, reflexo de nossa história?
Uma frase como esta dificilmente sairia da boca de alguém que já não tivesse ao menos flertado com ideias pós-modernas. O Sr. Guy Ausloos compõe, pra mim, uma espécie de personagem caótico, libertário, complexo, anti-científico (poderiam alguns dizer), mas em perfeita sintonia com sua proposta. Convenhamos: admitir que nossas histórias sejam capazes de exercer algum tipo de influência em nossas teorias é de uma coragem invejável e condição inicial para uma prática coerente. Mas a confusão que imponho ao autor não é verdadeira. Dos textos produzidos, ele extrai a seguinte ordem, representando, diz, as três principais direções de suas reflexões – Tempo, Caos e Processo.
O Tempo
Ausloos nos conta que ainda no primeiro ano de seu curso de psiquiatria em La Chaux-de Founds, na Suiça, tornou-se assistente de Claude Cherpillod. Claude havia acabado de fundar a primeira consulta externa de psiquiatria no cantão de Neuchâtel. Era ainda primavera e, devido ao sol ou à iniciativa ainda ser muito recente, o afluxo de clientes era baixo. Bom para o jovem belga Ausloos, que pôde dispor de um tempo mais generoso para adaptar-se à sua nova realidade. Mas o outono foi chegando e com ele, talvez, a desconfiança de que a vida possa não ser tão colorida e quente quanto parece. Subitamente os problemas passaram a incomodar mais e a demanda foi aumentando, até que chegassem a 10 clientes por semana. O tempo, que antes fora generoso com o estudante, tornava-se escasso para seus pacientes. E vejam só como o acaso tem lá suas razões. Na impossibilidade de uma proximidade maior entre os atendimentos, optaram naturalmente por encontros mais frequentes durante o início da crise, quando a necessidade do paciente torna-se maior em relação ao terapeuta, e mais espaçados no final, digamos um mês entre um e outro, quando o paciente precisa de tempo pra mudar. A boa nova era que a melhora acontecia!
Segundo Cherpillod - em resposta ao espanto de Ausloos - isso só poderia acontecer com terapeutas experientes, que sabem muito bem o que fazem ou com inexperientes, que decididamente não o sabem.
Ausloos demorou 25 anos para entender completamente a lição da boa utilização do tempo e poder aproveitar-se largamente dela.
No ano seguinte, o autor se muda para Lausanne para trabalhar em pedopsiquiatria com Odette Masson, bem como em uma instituição para adolescentes delinquentes. Foi ali onde teve seu primeiro contato com a abordagem familiar. Em 1974 assume a Unidade de Psiquiatria Legal do Instituto de Medicina Legal da Universidade de Genebra, até que em 1979-80 conhece Giuliana Prata, na condição de supervisionado. Ela, juntamente com Mara Palazzoli, Boscolo e Cecchin formavam a Equipe de Milão. Na época, o grupo denominava o que fazia como “longas terapias breves”, em função de concentrarem em apenas 10 sessões um tratamento que podia ocupar um ano inteiro. Esse tempo era fundamental, descobriu Ausloos, para que as famílias pudessem observar, experimentar e, enfim, mudar. A isso denominou o “Tempo do Processo”. Garante ele que ainda hoje conserva em sua prática atendimentos mensais, além do hábito de retirar-se ao fim da entrevista para preparar sua conclusão e apresentá-la a família.
O que também viria no pacote da experiência milanesa, e que antagonizava com suas descobertas, seria a postura impaciente com que o terapeuta se colocava para produção de algum efeito visível na família. Em sentido contrário ao tempo dado à família, ansiosamente, Ausloos criava hipóteses, estratégias, prescrevia, buscava compreender, numa atitude que, mais tarde descobriria, não lhe garantia êxito algum.
Dois Postulados
Ausloos se muda para Quebec em 1986. Novas ideias, como auto-referência, auto-organização, o construtivismo demonstrando o fato de decifrarmos o real com a ajuda de nossos mapas teóricos, o terapeuta implicado nas situações, imerso no processo etc. Tudo passa a fazer grande sentido para o autor, que começa a basear suas intervenções em dois postulados:
-
Postulado da Competência
Segundo este, as famílias, devem ser vistas antes pelo que conseguem realizar (que não é pouco) e não ao contrário.
Brazelton foi quem desenvolveu a ideia na qual Ausloos se baseia, invertendo a noção de incompetência e fragilidade atribuída aos bebês e os considerando extremamente capazes nas tarefas que lhes cumpre desenvolver, quais sejam, sugar, beber, dormir, chorar etc.
A grande virada que o postulado nos traz é desencarregar o terapeuta da arrogante tarefa de tomar pra si o problema do outro, transformando-o, então, em um ativador de processos.
Ausloos:
Posso dizer que fazer terapia é ativar um processo familiar pela circularidade de informação dentro da família.[3]
O que nos leva ao segundo postulado:
-
Postulado da informação pertinente
Desta vez é Bateson e os milaneses que o guiam. Bateson, quando elabora a célebre frase “a informação é uma diferença que faz a diferença” e os milaneses, quando lhe apresentam a ideia de circularidade da informação. Ausloos passa a compreender que fazer com que as informações circulem na família não é recolher dados numa anamnese para posterior discussão, mas “fazer descobrir aos membros da família coisas que eles não sabem que sabem sobre sua relação”. Isso leva a família ao encontro de suas próprias soluções, das auto-soluções que surgem das novas informações que vão brotando. E aí se tem novamente o tempo como aliado, auxiliando a família na experimentação de novas soluções.
Aceite a imprevisibilidade, desconfie das hipóteses e privilegie as inovações, diz Ausloos. Concentre-se apenas em ativar o processo, ajudando a família a vencer a força do hábito. A Informação deve ser retroativa, ou seja, num primeiro momento vir da família, para depois retornar a ela relançando o processo.
A ideia do terapeuta como ativador do processo talvez requeira um pouco mais de explanação. Ausloos nos ajuda com algumas proposições.
-
Passar do tempo imobilizado do diagnóstico ao tempo dinâmico da evolução potencial;
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Tentar não saber;
-
Não se centrar sobre os conteúdos, mas sobre os processos;
-
Sair de nossa impaciência terapêutica;
-
Deixar de falar de resistência das famílias, de resistência de nossos clientes.
Ausloos resume brilhantemente em dois tempos:
As famílias têm as competências necessárias para efetuarem as transformações de que precisam com a condição de as deixarmos experimentar suas auto-soluções e ativarmos o processo que as autoriza a isso.[4]
O segundo:
Termino retomando a conclusão de VaclavHavel e substituindo a impaciência política pela impaciência terapêutica, o que resulta no seguinte: “Ao refletir sobre minha impaciência terapêutica, devo obrigatoriamente constatar que o terapeuta de hoje e de amanhã – permitam-me utilizar o conceito de “terapeuta pós-moderno”- deve aprender a esperar, no melhor e mais profundo sentido da palavra. {...} Esta espera deve traduzir um certo respeito pelo movimento intrínseco e pelo desenvolvimento do Ser, pela natureza das coisas, a sua existência e a sua dinâmica autônoma que resiste a qualquer manipulação violenta; esta espera deve basear-se na vontade de dar, a qualquer fenômeno, a liberdade de revelar seu próprio fundamento, a sua verdadeira substância. O comportamento do terapeuta pós-moderno não deve continuar a proceder de um ponto de vista pessoal. Em vez de se firmar no seu orgulho, deve alimentar-se de humildade.” E eu acrescentaria: em vez de se firmar no brio do terapeuta, deve alimentar-se da competência das famílias.[5]
O Caos
Grosso modo, a Teoria do Caos diz o seguinte: é impossível prever. A não ser em curto prazo, pois o comportamento dos sistemas dinâmicos é extremamente sensível às condições iniciais. Uma pequena mudança no inicio de um evento pode ocasionar enormes alterações nos resultados finais.
Segundo Stacey:
(...) em sua definição científica, o Caos não significa desordem absoluta ou uma perda completa da forma. Ele significa que sistemas guiados por certos tipos de leis perfeitamente ordenadas são capazes de se comportar de uma maneira aleatória e, dessa forma, completamente imprevisível no longo prazo, em um nível específico. Por outro lado esse comportamento aleatório também apresenta um padrão ou ordem “escondida” em um nível mais geral (...) O Caos é a variedade individual criativa dentro de um padrão geral de similaridade.[6]
Quem desenvolveu em 1963 o estudo dessa desordem organizada foi um meteorologista chamado Edward Lorentz. Tentando estabelecer a evolução das condições climáticas, criou um modelo no qual, inserindo em um computador valores iniciais de ventos e temperaturas, obtinha, ao final, a previsão do tempo. Lorentz imaginava que pequenas mudanças nas condições iniciais ocasionassem mudanças também pequenas nos resultados finais. Não foi o que ocorreu. Mínimas mudanças nas condições iniciais proporcionavam mudanças enormes na evolução do quadro como um todo.
Em 2004, Hollywood transformou a ideia em filme - “Efeito borboleta”. Um rapaz descobre uma maneira de voltar no tempo e mudar coisas que gostaria que tivessem ocorrido diferentemente. Por diversas vezes, vê toda sua vida modificada pelo ato inicial, nunca conseguindo satisfazer-se com os resultados finais. O título se refere à ideia de que um simples bater de asas de uma borboleta em um canto do planeta seria capaz de provocar uma tempestade do outro lado do mundo.
Lá para o fim dos anos 70, poetas, físicos, matemáticos, biólogos apaixonados por fenômenos como a formação de nuvens, a corrente dos rios, representações gráficas... foram cada vez mais aproximando-se do tema.
Mas eAusloos com isso?
Ele:
Quem pode ainda pretender que a vida é ordem, razão, lógica, previsão, lei suprema e organizadora?[7]
Para além da aceitação de que “o chão que pisamos não para de fugir aos nossos pés”, Ausloos enxerga na teoria a possibilidade de, nos livrando da ilusão do controle sobre a vida, realizar uma espécie de exercício criativo. Sem temor do imprevisível. Como se o Caos pudesse ser o húmus, a “fonte de vida que procuramos sem conhecer”.
Admitir que vivemos no Caos e que nossos esforços para contê-lo são votados ao fracasso é se calhar o princípio da sabedoria. Caos do nosso cotidiano, quando o imprevisto se torna previsível, caos que o esquizofrênico tenta dominar num delírio onde tudo é possível, mas onde também tudo se explica, caos do toxicômano que tenta a evasão para se encontrar na cadeia da dependência. E nós que tentamos “normalizar”, isto é, reenviar à norma, polir o que nos ultrapassa, cortar as asas aos anjos da imaginação, do imprevisto, do sempre movediço. É preciso lembrar Wim Wenders? Ou o Milagre de Milão de Sica? O caos que reina nos países do leste, o caos que destrói as famílias desfavorecidas, o caos dos sem abrigo, são anomalias odiosas que importa esconder, reduzir, exorcizar para que a regra possa permanecer? São, pelo contrário, a excrescência incômoda, a pústula violácea, o tumor enegrecido que só pode suscitar um funcionamento humano que vise a ordem, o método, o policiamento, até o encarceramento de tudo o que nos lembra esse caos, sobre o qual vivemos como Job sobre o estrume?[8]
Para Ausloos a vida é um constante confronto com o imprevisível, daí a possibilidade de elaboração de soluções originais de adaptação de nosso funcionamento a um cotidiano mesquinho.
Transpostas para realidade clínica o que podemos concluir é que tornamos muito mais pobre o processo de acompanhamento de nossos clientes quando nos vemos presos a ideias de organização, controle e orientação, ao invés de aproveitarmos as generosas pistas sugeridas a todo momento pelo caos e seu cúmplice o acaso.
Aqui vai um pequeno exemplo de ativação do sistema e imprevisibilidade, que nada tem a ver com o caso que se pretende aprofundar nesse trabalho, mas que vem bem a calhar.
Um casal aturdido pela impossibilidade de engravidar veio me pedir ajuda. Num dado momento do processo os dois mencionaram outro casal que vivia a mesma situação. Pedi que me dissessem como viam esse outro casal, com o objetivo colocá-los na posição de observadores de si, questionando-se a respeito das sensações de estranheza, pena, inferioridade que depositavam neles próprios. Algo como a reprodução de um olhar externo para o casal talvez pudesse, pensei eu, desmistificar o mau conceito que tinham de si. O exercício foi realizado, mas obtendo resultado totalmente diverso do esperado. Ao invés de destacarem os sentimentos que os tornavam inferiores aos outros, ativeram-se ao polo oposto, ou seja, aos sentimentos de superioridade que carregavam, destacando a vaidade como principal elemento complicador na decisão de adotar uma criança ou concebê-la com óvulo ou espermatozóide de terceiros.
A luta contra o caos
Há poucos dias, assisti a uma palestra sobre os diálogos possíveis entre a Psicanálise e a Terapia Familiar. O palestrante, que além de psicanalista era terapeuta familiar, buscava esclarecer como se dá na prática essa estranha junção, capaz de botar em pé o cabelo de alguns puristas, tanto de um lado quanto de outro. Esse era o desafio. Argumentava que muitos dos fundamentos psicanalíticos foram, na verdade, apropriados pela terapia familiar e, por conseguinte, não só não antagonizavam com ela, como lhe eram de grande utilidade. E que a psicanálise atual, principalmente na figura de Lacan, não mais se encaixava na categoria de “moderna”, querendo assim dizer que seus pressupostos não passavam mais pelas ideias de “simplicidade”, “objetividade” e “estabilidade”.
Como tenho fé e pouco conhecimento da nova psicanálise, acreditei.
Ausloos, em 1995, duvidava muito:
... o racionalismo não é somente uma herança da gestão, mas de toda uma cultura ocidental que parece ter sido sempre dominada pela necessidade de compreender. Em psicologia em particular, os utensílios que nos foram fornecidos pela psicanálise deram-nos a ilusão de que todo ato tinha um sentido e que competia ao terapeuta descobri-lo. Se mesmo no jogo de palavras e no dito espirituoso se podiam encontrar explicações, era evidente que os nossos comportamentos diários não podiam ser aleatórios. As frases como: “Não é por acaso que...” ou “Acontece isso porque...” tornaram-se de tal maneira correntes nos nossos discursos que já nem as notamos. De sonhador impenitente que era, o terapeuta transformou-se progressivamente em introspector, herdeiro tanto de Sherlock Holmes como de Freud. “Procurem o móbil” foi substituído por “Encontrem a Intenção”.[9]
Passam pela mesma esteira o pensamento classificatório, a avaliação, a observação, a medição, a teorização e, é claro, o controle. Daí os testes de QI, a nomeação das “perturbações” da personalidade (psicose, neurose, delinquência, toxicomania...) e os serviços e profissionais especializados em cada uma das categorias. Assim se evita o caos das especificidades individuais.
A hipótese funcional de “a Competência das Famílias”
O artigo que compõe o capítulo 4 do livro foi escrito por Ausloos em 1988, antes ainda de seu contato com a teoria do Caos. Nesta época, as ideias dos caoticistas lhe chegavam como confirmação de alguns conceitos sobre os quais vinha se debruçando. O artigo é uma tentativa de traçar os acasos de uma abordagem, as questões do terapeuta e as suas referências teóricas.
Sua argumentação toma por base o caso de um rapaz de 15 anos, trazido pela mãe ao hospital por ter ingerido uma dezena de comprimidos para asma.
O caso é utilizado pelo autor como instrumento de observação dos caminhos que o terapeuta percorre no processo de acompanhamento da família.
Por exemplo, algumas hipóteses vão naturalmente sendo construídas na medida em que o caso do rapaz vai sendo apresentado:
- O rapaz está entre a espada e a parede por conta do pedido de sua colocação no centro de acolhimento;
- Há muitas mulheres envolvidas na história e o pai permanece distante;
- O rapaz asmático sente-se frágil e receia sua separação da mãe, mesmo que seu comportamento diga o contrário.
Sempre me causou certo desconforto o levantamento de hipóteses a respeito das crises familiares antes mesmo da chegada da família ao consultório. Era procedimento normal em minha formação levantar tais hipóteses já na leitura da ficha de inscrição da família. Eu me perguntava qual a finalidade, se a chance de encontrarmos alguma semelhança com a realidade que havíamos imaginado era mínima. Na época, me satisfez o argumento de que assim mantínhamos uma conexão maior com o caso e a família.
A opinião de Ausloos sobre o levantamento de hipóteses é a seguinte:
Aquilo a que chamamos hipótese, em terapia, não é, muitas vezes, mais do que uma explicação tão linear como a da família, mas que o terapeuta tem tendência a considerar mais pertinente.[10]
Mara Selvini(1983) define a criação da hipótese como “uma suposição não comprovada, aceita na experiência como base para uma investigação posterior”.
Ausloos faz duas ressalvas a essa observação.
A primeira diz respeito ao fato de que a situação que vivemos na terapia não é uma situação experimental, onde se verifica uma tese, mas sim inter-relacional, onde os membros são atores e onde não há nada a provar, mas apenas um processo a ativar.
A segunda é que a terapia não tem como finalidade a compreensão, mas sim a mudança. E aí podemos observar mais um dos aspectos desconcertantes da visão de Ausloos, pois não é verdade que há tempos entendemos a compreensão como pré-condição para a mudança?
Ao invés de investigar, recolher dados, coletar informações, verificar hipóteses, propõe ele que mergulhemos sem receio no processo interativo esperando que de lá surja o imprevisto e talvez a mudança.
Conclui:
A formulação de Selvini permanece pertinente, na condição de ser meta: não há hipótese a verificar ou investigação a efetuar, mas esse artifício permite ao terapeuta tranquilizar-se e conservar uma coerência de que tem necessidade para não se perder. Se ele sabe que não verifica nada, mas que esse meio lhe permite empenhar-se no processo, por que não? Poder-se-ia falar, nesse caso, em Hipótese funcional.[11]
Faz todo o sentido para mim.
A má conotação positiva
A conotação positiva, técnica desenvolvida pelo Grupo de Milão, busca estabelecer uma aliança com o sistema ressaltando aspectos positivos de seu funcionamento ou do comportamento do paciente, passando de uma definição patológica para a ativação de suas competências. Geralmente antecede a prescrição paradoxal.
Diz Ausloos:
Neste sentido, a conotação positiva não é paradoxal. É-o somente para os terapeutas, que foram instruídos a assinalar as disfunções individuais ou familiares e tem o sentimento de não fazerem seu trabalho quando dizem qualquer coisa de positivo. Ela também não é uma manipulação desonesta já que consiste apenas em demonstrar que o copo que julgávamos meio vazio também está meio cheio. Ela justifica-se perfeitamente no campo da ética terapêutica na medida em que só é válida se o terapeuta puder aderir a ela plenamente. Se não pensasse naquilo que digo à família, seria incapaz de conotar positivamente e não faria mais que um pálido galanteio que nunca seria eficaz em longo prazo.
Notando que suas conotações positivas eram sempre relacionadas aos aspectos da sessão que mais o incomodavam, decidiu por bem aproveitar-se disso utilizando a Má Conotação Positiva.
Exemplo de uma fala de Ausloos em sessão:
Achei difícil o fato de falarem todos ao mesmo tempo, de se interromperem e de não responderem diretamente às minhas perguntas, mas vejo aí o sinal de que na vossa família todos querem participar do que acontece e transmitir o seu ponto de vista e com isso posso trabalhar bem. Na próxima vez, com certeza, me farei mais policialesco, mas alegro-me por continuar a trabalhar com vocês.[12]
A estratégia oferecia algumas vantagens:
-
O que iria conotar já estava pronto;
-
Encontrando o aspecto positivo no que mais o desagradava, o terapeuta já se via transformado antes da família;
-
A conotação era autêntica, pois que associada ao que acabaram de viver;
-
O exercício permite ao terapeuta desembaraçar-se do lixo da entrevista. É também uma boa maneira de auto-formação, já que possibilita ver as famílias melhor do que parecem se revelar e os pacientes como mais criativos.
A prescrição
Ausloos se utiliza da prescrição como maneira de implicar os membros da família, reforçar sua aliança e sua adesão ao processo, mais do que como uma ação sistemática.
A família do rapaz asmático que lhe serve de exemplo trazia consigo um sentimento de fracasso e incompetência e incluí-los na elaboração da prescrição, pensou Ausloos, lhes daria uma sensação de cumplicidade e aceitação. Foi o que fez.
Percebam que mesmo quando ele lança mão de um instrumento mais diretivo como a prescrição, nos deixa claro o quão importante é utilizar este recurso com criatividade e flexibilidade. A prescrição, sua elaboração, a maneira de aplicação nunca é padronizada. O terapeuta tem de usar boa dose de sensibilidade, adequando sempre sua proposta a cada família que vier a trabalhar, às vezes se mostrando mais como profissional competente, às vezes mais como cúmplice etc. Importante é que a prescrição seja clara, simples, precisa e compreensível. Outro detalhe é o cuidado de que a tarefa escolhida não tenha como objetivo a aprendizagem, o que a tornaria uma prescrição comportamental.
A prescrição era a seguinte:
Ausloos pede à família que durante o mês subsequente ela passe um fim de semana na casa de campo sem a mãe.
O objetivo é triplo, diz:
- Fazer-lhes experimentar uma situação nova que eles não conhecem;
- Colocá-los numa posição de observadores de seus próprios comportamentos, pondo-os num contexto suficientemente conhecido para que não seja demasiado inquietante, e ver com eles o que isso revela sobre seu funcionamento;
- Finalmente, manter uma pressão suficiente durante o intervalo que separa as sessões: eles deverão pensar, escolher o fim de semana em que farão a experiência, cada um se interrogará antes e depois sobre o que isso mudou nos seus hábitos; receios e esperanças começaram a modificar imperceptivelmente os papéis de cada um.[13]
No caso, a mãe, sempre presente e com quem todos contavam, exercia um papel central. A ideia era forjar uma mudança mínima de papéis, esperando que esta fosse o ponto de partida para modificações mais importantes.
Alguma semelhança com um tal de “efeito borboleta”?
O Processo
Qual é o processo que leva à designação do paciente-identificado, ao isolamento de seu sintoma, à patologização da problemática familiar?
A Terapia Familiar, desde seu início, tende a encarar o sintoma como uma espécie de necessidade interna do sistema. Como se este tivesse a capacidade de, sentindo o que lhe falta, gerar seu próprio “remédio”, no caso o comportamento sintomático, que, ao cumprir sua função, salvasse o sistema.
Segundo Ausloos, algo aí não combina bem com o pensar sistêmico. Não seria forçar um pouco a barra conceber um sistema com tamanha aptidão para determinar e direcionar suas finalidades? E mais, citando Jean Rostand: “Os sistemas não são da Natureza, eles existem apenas no espírito dos homens”. Como, então, conceitos criados pelos homens poderiam ter um objetivo?
Mas, diz Auloos, e se ao invés disso considerássemos que o sintoma não existe à priori? O que existe é uma família com dificuldades ocasionadas tanto por fatores internos quanto externos e para as quais não enxerga solução. Decorre daí que, nesse estado de tensão, alguns comportamentos (dentre inúmeros outros até então tidos como normais) começam a produzir resultados que geram mais tensão. Então o novo comportamento passa a se apresentar como objeto privilegiado de foco de atenção por parte dos outros membros do sistema e, passo a passo se amplia, tanto pela provocação que causa em quem o produz como pelo sentido que tem para os demais.
Ausloos:
É importante ver que, à partida, esse comportamento não era senão um comportamento aleatório, que num primeiro tempo foi selecionado pelo jogo de interações, para ser seguidamente ampliado pelo sistema, num mecanismo de retroação positiva. É a isso que chamo o processo de seleção-ampliação.[14]
Discorda Auloos que o sintoma preencha uma função determinada no momento em que aparece. A constatação de que poderia corresponder a uma função, na verdade, acontece durante a consulta. É um erro imaginar que a função já estava pronta a esperar pelo sintoma. O comportamento inicial nada mais era do que um comportamento qualquer, que não carrega em si um “germe problemático”.
Nada mais normal que um adolescente isolar-se no seu quarto, seja para meditar, para amuar, para se entregar aos prazeres solitários ou ainda para saborear um bom livro ou ouvir sua música preferida. Só quando esse comportamento é acentuado como espantoso, estranho, inquietante é que começa a tornar-se uma entrada em jogo no campo relacional do sistema familiar.[15]
O próximo passo é sua cristalização. O comportamento passa a tornar-se um hábito, a fazer parte da economia pessoal do sujeito, transformando-o no paciente-identificado. O processo de retroação passa de positivo a negativo. Se o sintoma desaparecesse, perturbaria o sistema que estimularia a sua volta, pois a função do sintoma já é parte de seu funcionamento.
Sua proposição tem como consequência a ideia de que, se é o sistema quem contribui para a formação do sintoma, é também ele quem poderá contribuir para seu desparecimento.
Ausloos tem como uma de suas marcas o seguinte postulado:
Um sistema só se pode colocar problemas que seja capaz de resolver.
Diz:
Partir deste postulado é evidentemente fazer desde logo referência às competências da família, estar pronto a utilizá-las: elas poderão deslaçar o que contribuíram para atar. Citarei Piaget, numa entrevista televisiva por ocasião do seu septuagésimo aniversário: “Cada vez que ensinarem uma coisa a uma criança, impedem-na de descobrir por ela própria.” O meu papel enquanto terapeuta não é o de solucionar os problemas da família, mas que sejam eles a encontrarem soluções; não é o de compreender, mas que sejam eles que compreendam. O terapeuta não deve procurar uma agulha no palheiro, pois ele nem mesmo sabe se é uma agulha que deve procurar. Ele está mais na posição de um antropólogo que recolhe as narrativas do que quer conhecer, sem saber precisamente o que precisa recolher nem em que isso ajudará aqueles que ele encontra. Entretanto, isso não passa necessariamente por uma compreensão do sentido ou da função do sistema.[16]
UM EXEMPLO DA NOSSA PRÁTICA
No Instituto de Terapia Familiar de São Paulo, onde me formei, os atendimentos tinham início a partir do segundo ano de curso. A Instituição dispunha de uma sala equipada com microfone, câmera, monitor de vídeo e gravador de DVD, o que possibilitava que, com autorização das famílias, as sessões fossem gravadas e transformadas em material didático. A sala era separada de outra por um espelho unidirecional. De um dos lados ficavam a família e os terapeutas (sempre dois), do outro, o restante dos colegas de curso e os supervisores. Estes dispunham, além do mais, de interfones ligados a sala na qual ocorria o atendimento, podendo, durante o processo, comunicarem-se tanto em particular com os terapeutas como diretamente com estes e a família. Isso tornava o processo extremamente dinâmico, pois desenvolvido por todos os membros da equipe simultaneamente. Se por um lado a situação de observação pudesse causar certo incômodo aos terapeutas mais tímidos em formação, por outro os confortava, em função da divisão da responsabilidade. Havia um ponto de vista para cada membro do grupo, o que ampliava enormemente os caminhos possíveis, as visões a respeito dos temas, da família e de nosso próprio trabalho.
Após um ano de curso, os recursos que dispúnhamos para o atendimento eram: o conhecimento das primeiras escolas da terapia familiar, uma introdução ao paradigma pós-moderno e a vivência em sala com o grupo em formação. Na verdade, parte importante do aprendizado dava-se através da construção do relacionamento entre alunos e professores. Muitos dos conceitos da terapia familiar tratados na formação eram desenvolvidos ali, na prática, como a horizontalidade, a ideia de sistema, a importância da linguagem, o saber ouvir e perguntar etc.
Apesar de a programação acompanhar basicamente uma ordem cronológica da história da Terapia familiar, com suas escolas fundadoras etc., consideravam fundamental nos irmos acostumando a uma visão mais atualizada do universo que a envolvia. O estudo das escolas, na realidade, se prestava, para além da simples contextualização histórica dos temas, também como fonte inesgotável de visões privilegiadas de terapeutas geniais em sua época. A cada escola que passávamos íamos nos percebendo cada vez mais assemelhados a seus principais representantes. Fomos Haleynianos, Minuchinianos, Bowenianos e Whitakernianos de carteirinha. De tão geniais que eram, acabavam por nos influenciar na maneira de atender e entender o tratamento. Normal que acontecesse.
2008 era meu segundo ano de curso e foi quando atendi a primeira família.
Marina[17] era uma mulher de 43 anos de idade, professora em escola pública já há 19 anos. Tinha habilitação para trabalhar da primeira a quarta série, mas trabalhava com educação infantil por sentir-se, dizia ela, pouco capacitada. Baiana de Arapiranga (mais ou menos 6 horas de Salvador), veio para São Paulo com 17 anos de idade para trabalhar como doméstica em casa de família, que acabou adotando como sua e com a qual mantinha um bom relacionamento até então. Sua mãe adotiva ainda vivia. Sua mãe biológica havia morrido há dois anos. Marina não tinha contato com o pai biológico. Junto com Antonio, de quem separou-se três semanas antes do início do processo terapêutico, teve duas filhas: Tereza de 8 anos de idade e Berenice de 3, que permaneciam com Marina. Era católica praticante.
Antonio tinha 39 anos. Possuía segundo grau completo e trabalhava informalmente confeccionando pipas em sua própria casa. Já havia tido emprego fixo em grande empresa, da qual foi dispensado, segundo ele, em decorrência de sua desatualização em novas tecnologias. Após demissão, fez filmagens de casamento, pinturas em camisetas etc. Morava na casa em que vivia a família, no terreno da casa de sua mãe, que é viva. Antonio tinha uma irmã e dizia-se católico, mas não praticante.
Tereza era a filha mais velha do casal. Tinha 8 anos de idade e chegou ao consultório como paciente identificada. Segundo sua mãe, sofria de problemas respiratórios, como rinite, sinusite, adenóides etc. A indicação para tratamento de terapia familiar foi feita por sua fonoaudióloga. Estava na terceira série, em escola diferente da que sua mãe trabalhava. Havia poucos alunos em sua sala.
Berenice tinha três anos e nasceu prematuramente. Mamava no peito até 5 meses antes do início das sessões. No primeiro encontro mostrou-se ativa, desenvolta e expansiva. Segundo a mãe, não apresentava nenhum problema de saúde.
A primeira reflexão que proponho é a seguinte:
Quais impressões (as primeiras) sentimos hoje, passados quase cinco anos do atendimento, ao ler uma descrição como essa? Que tipo de imagens formamos em nossa mente? Em quais lugares de nosso repertório vão se acomodando essas informações?
Você leitor, que coloca seu olhar pela primeira vez sobre a descrição dessa família, faça o seguinte exercício: perceba se, para cada informação recebida, já existe um lugar reservado em seu “prontuário de conhecimentos”. Uma espécie de fichário dividido em categorias específicas que juntas lhes dão a sensação de já quase poder definir o sistema como um todo, bem como seus membros, em algumas poucas palavras. Pergunte-se qual influência sofre a imagem que formou da família quando toma como informação principal, por exemplo, um dos aspectos que são fornecidos, como a classe social, origem, filiação, religião ou situação financeira?
Juntemos à nossa reflexão a voz de Harlene Anderson, outra importante terapeuta pós- moderna:
Ennuestrasociedad, La terapia ha sido tradicionalmente um lujo de las classes media y alta. Enlas últimas décadas se ha ido produciendo um cambio: La terapia se usa cada vez más como unarnés social. La maioria de los terapeutas y de quienesdiseñan y administran sistemas terapéuticospertencen a um círculo privilegiado que se caracteriza por no tenerlosmismos valores e experiencias que sus clientes. Lasdecisiones sobre quéconstituye um problema y qualessonlasindicaciones y contraindicaciones para uma terapia dependen de fatores como las circunstancias socioeconómicas, lasdecisiones de uma corte de justicia y lasteorías psicológicas em boga. La voz dominante, la voz profissional designada por la cultura, suelehablar por laspoblacionesmarginales – minorias sexuales, econômicas, étnicas, religiosas, políticas y raciales – y decide se la terapia es necessária, qué classe de terapia, y com cuálfinalidad. A vecessinquererlo, a veces a sabiendas, los terapeutas subyugan o sacrifican a sus clientes en aras de las influencias de este contexto más amplio, que es primariamente patriarcal, autoritario y jerárquico.[18]
Isto pode ter como consequência duas atitudes:
Uma colocada pela própria autora, que éimpor à família pontos de vista, valores, soluções que são do próprio terapeuta e não da família. A outra é ele acreditar de antemão que o que a família pensa e traz é facilmente, naturalmente, determinável. Afinal, quem não possui algumas certezas sobre como enxergar uma imigrante nordestina + empregada doméstica + adotada por uma família classe média do sudeste? Ou um fazedor de pipas que mora na periferia, no terreno da mãe, e tem segundo grau completo?
Na época, em relatório, definíamos a família da seguinte maneira:
“Família muito apresentável. Bem cuidados, asseados. As meninas super ajeitadinhas. Ela simples, mas bem vestida e ele também”.
Por que nosso olhar teria pousado justamente sobre este aspecto, quando havia tantos outros a serem observados além da aparência? O que tanto nos disse, a ponto de registrar a observação como dado para futura reflexão? Que informações subjacentes e importante material de trabalho nos traz a aparência de alguém?
Alguns poderiam argumentar que a impressão inicial que se tem de uma família se transforma com o tempo e, portanto, não se configura preocupação tão relevante.
O que penso é que nossas pressuposições não são privilégio de uma primeira sessão ou mesmo do momento da leitura de uma ficha de atendimento. Elas nos acompanham durante todo o processo terapêutico, impregnando nossa visão do problema e as tentativas de solucioná-lo.
Lembremos-nos de Ausloos em sua segunda proposição, qual seja, Tentar não Saber.
“Estamos de tal forma dirigidos para compreender que não vemos, sequer, o que estão a fazer à nossa frente. Por conseguinte, tento abster-me, o mais possível, de compreender. Não se inquietem, não o consigo, o hábito é demasiado forte. No entanto, deixo de tentar encontrar a hipótese de compreensão, porque há, pelo menos, trinta e seis hipóteses (princípio da equifinalidade). Na vida relacional, não é como na matemática. Na matemática diz-se: Não há trinta e seis soluções, é ou isto ou aquilo. Ou é verdadeiro ou falso. Na vida, há sempre trinta e seis soluções. Logo há trinta e seis hipóteses de compreensão. Por que é que eu haveria de privilegiar a minha própria hipótese, que construí em função dos meus mapas de referência do real para impor à família, em vez de tentar dar-lhes a oportunidade de desenvolverem as suas próprias hipóteses?”.[19]
E o que é compreender senão organizar cada informação em seu escaninho?
Nosso primeiro relatório dividia-se em:
-
Temas abordados;
-
(Algo como) Aspectos da comunicação analógica e digital;
-
Ressonâncias;
-
Autores que nos inspiraram;
-
Tarefa;
-
Impressões pessoais; eobviamente
-
Hipóteses.
Enquanto Watzlawick nos apontava, por exemplo, a postura corporal da mãe; contraída, distante do pai, olhar voltado para as crianças; o pai com o braço esticado e corpo voltado em direção à mãe, como que desejando maior proximidade etc. Witaker nos lembrava sobre a responsabilidade pelo sucesso do atendimento ser depositada na família; a ideia de enxergar o terapeuta como um treinador de um time; a importância de vermo-nos um pouco na família etc. De Virginia Satir ouvíamos: “Um relacionamento conjugal disfuncional é a situação que mais contribui para o afloramento de sintomas em uma criança”.
Durante toda a primeira sessão não houve sequer uma pergunta circular.
Quanto às hipóteses que levantávamos (e aí retomamos o argumento anterior) pouca alteração sofreram até o final das sessões realizadas com a família. Não me refiro aqui aos resultados do trabalho como um todo. Muito se conseguiu durante o processo. Busco apenas ressaltar aquele “hábito demasiado forte” ao qual Ausloos se referiu anteriormente.
A ideia de Antonio como um bom pai, mas um homem frágil, um tanto imaturo e dependente protegido pela filha mais velha através de suas crises respiratórias ou a mãe, vista como o “homem da casa”, determinada em suas atitudes, compuseram imagens que nos acompanharam por todo o trabalho, como espécie de balizas, sinais demarcadores dos principais aspectos a serem tratados. Algo assim como: é necessária uma maior distribuição de poder entre pai e mãe. Como se desse equilíbrio dependesse o bem estar da família. Como se esta fosse a função do terapeuta, enxergar a falha e corrigi-la.
Percebam que, mesmo quando não atuávamos de maneira diretiva – via orientações específicas, tarefas – o que sustentava nossa ação, seja ela qual fosse, ainda estava no campo da diretividade. Apesar dos resultados positivos alcançados junto à família, ainda hoje resta a sensação - a nós candidatos a pós-modernos - de que estivemos “fazendo por” e não “com” a família.
Além do hábito da compreensão e das consequências que isso traz, há outro aspecto muito sedutor influenciando a atitude terapêutica, que é o da autoria. Assim como dizia o palestrante sobre a terapia familiar ter se apropriado de alguns fundamentos psicanalíticos, é possível que tenhamos importado a aura detetivesca que lhe é característica, capaz de, genialmente e à revelia do cliente, descobrir o que ele não faz ideia que sabe, o que está encoberto, pronto a ser desvendado. Isso confere a nós, sem dúvida, boa dose de poder acompanhado da sensação de sermos realmente úteis e estarmos fazendo corretamente nosso trabalho, fazendo real diferença, pois, sem nosso olhar, o processo estaria irremediavelmente empobrecido.
Por exemplo:
Marina afirmava na segunda sessão que gostaria de um homem “maior” que ela, mais companheiro, que caminhasse junto, colaborasse, participasse mais.
Seus relatos a respeito tanto do casamento de sua mãe biológica quanto da adotiva indicavam relações frágeis com os maridos. Sua mãe biológica havia criado todos os filhos “sem ajuda do marido” e sua mãe postiça separara-se do marido por conta de seu alcoolismo.
O estabelecimento de uma conexão direta entre os relatos e a escolha de Antonio como marido foi quase automática. Havíamos “achado” uma pista, em meio às informações oferecidas pela família. Algo que “descobríamos” graças ao nosso olhar de experto. Afinal, Antonio era, não só aos olhos da esposa, mas também aos nossos, um homem sem grandes atrativos. Humilde, frágil, e, portanto, passível de descarte.
Em relatório, uma das hipóteses levantadas para segunda sessão era que Marina estaria sempre à procura de um homem descartável, assim como suas mães: “Marina segue o modelo da mãe”; “Almeja um amor impossível”.
Hipóteses como estas acabam por ganhar, nem que pelo tempo de uma sessão, o status de realidade. E não nos damos conta de que, ao definir papéis, cristalizamos personagens, perdendo a possibilidade de deixar aos atores a descoberta dos inúmeros papeis que podem, poderiam e poderão representar. Manter internamente a convicção de que suas hipóteses têm uma função limitada, específica, que são efêmeras e se prestam mais à conexão com a realidade do que ao seu esclarecimento é extremamente custoso ao terapeuta. Tão mais fácil seria descobrir a “verdade” e ajustá-la ao que se quer.
Mais fácil para quem?
RelembrandoAuloos: porque deveríamos tirar das famílias a possibilidade de desenvolver suas próprias hipóteses?
Analisando as sessões, pode-se também perceber que nossos caminhos eram escolhidos muito em função da compreensão das questões apresentadas pela família. No relatório, há muito mais informações sobre sua história do que sobre seus processos. Não que nos tivéssemos mantido centrados numa coleta cega de informações. Essa orientação sempre foi clara da parte da supervisão: fugir dos conteúdos. Mas houve, sim, pouco aproveitamento por parte dos terapeutas e da equipe a respeito da maneira, por exemplo, como os elementos da família administravam, em termos relacionais, seus problemas.
Os conteúdos, diz Ausloos, estão sempre coagulados no tempo. (...). Claro que eles permitem a compreensão, claro que dão um esclarecimento, mas eu não posso mudar o fato de o pai da paciente ter morrido há um ano e meio e, desde então, ela estar deprimida. Posso me centrar no processo que ela está a viver agora, a forma como ela gere sua depressão e os meios que emprega ou que não emprega.
O processo não é algo que se consiga parar. Segundo Ausloos a ideia de que funcionamos como máquinas, podendo hora funcionar, hora não, é herança de Newton e Aristóteles. A vida não para.
Quanto ao fato de nos determos tanto nos fatores desencadeantes, Ausloos explica da seguinte maneira:
A nossa forma de conduzir a entrevista, de nos demorarmos nos fatores desencadeantes (mesmo se como sistêmicos nos pretendemos não causalistas), de desconfiarmos acerca das resistências da família (que na maior parte das vezes não são mais do que a inércia, o hábito ou o receio de se verem confrontadas com um novo fracasso), de nos fiarmos mais na nossa abordagem do que os deixarmos improvisar a deles são outros tantos fatores que se arriscam tornar as mudanças menos prováveis.[20]
No que diz respeito ao tempo, as sessões realizadas com as famílias durante nosso curso mantinham (e ainda mantém hoje em dia) um intervalo de 15 dias entre uma e outra. Esse formato atendia, talvez, a uma questão pedagógica, que opunha aulas teóricas e práticas, somadas a quantidade de alunos versus tempo de curso. O fato é que, assim como para Ausloos em Neuchâtel, o tempo sempre esteve a favor do processo. Foram ao todo 10 sessões dedicadas em sua maioria para a condução do casal no processo de uma separação definitiva. Sem dúvida, os intervalos entre as sessões colaboraram, e muito, para o amadurecimento das questões, planejamento futuro e aceitação da nova realidade. Para citar apenas alguns aspectos.
CONCLUSÃO
O dilema apresentado lá atrás em nosso trabalho, qual seja, a dificuldade da manutenção de uma certa coerência entre teoria e prática, não é grande novidade nem no mundo da Terapia Familiar nem no acadêmico de maneira geral. Rosana Rapizo, na introdução de seu livro “Terapia Sistêmica de Família – Da Instrução à Construção”, nos dá uma visão panorâmica das inúmeras idas e vindas e dos dilemas enfrentados na prática envolvendo questões espinhosas como diretividade, controle, interferência, linearidade, propósito etc. Os temas eram pauta de discussão já desde a década de 60 quando Bateson (1968), voz principal, nos advertia dos perigos do uso de algumas noções elaboradas para interferência no comportamento humano. A argumentação, apesar de forte, ficou suspensa, por conta dos resultados animadores que a Terapia de Família vinha conquistando na década de 70, mesmo à revelia das novas teses. Em 1982, diz Rapizo, um número especial do Family Process, trouxe a questão novamente à tona. Um artigo de Paul Dell trazia importantes contribuições de Humberto Maturana a respeito dos Sistemas Autopoiéticos, não sujeitos à “interação instrutiva”. A eles juntaram-se vozes como de MonyElkaim, Prigogine, Watzlawick, Foester, que, ao final, acabaram por abrir alguns espaços que, mais tarde, puderam ser preenchidos por novos modelos baseados na linguagem, narrativa e conversação. O que se via acontecer, e esta é a questão que move nossa argumentação, é que os casos clínicos e conferências apresentavam, ainda na década de 80, material que pouco tinha a ver com as novas propostas não-intervencionistas.
Nos dias de hoje, o dilema persiste. Os terapeutas que utilizam tais técnicas, quando questionados, costumam argumentar que mudanças deste tipo não acontecem de uma hora para outra, e que a interiorização desses conceitos é uma luta diária e constante.
Diz Rapizo:
Em minha prática clínica e em contatos realizados ao longo do tempo com terapeutas do Brasil ou não, observo que boa parte deles continua usando intervenções clássicas na Terapia de Família, como as tarefas e paradoxos. A alegação para o uso de tais intervenções é, geralmente, a gravidade dos casos ou uma defasagem ”natural” entre teoria e prática. Ou seja, entre os radicais estratégicos e os radicais adeptos da não-intervenção, existem inúmeros terapeutas que continuam a usar técnicas habitualmente conhecidas como diretivas, adotam teoricamente uma visão construtivista e não conseguem falar dos momentos em que são “interventivos” a não ser como “exceções” bastante comuns.[21]
Conclui mais à frente, que considera tais intervenções recursos possíveis, não apenas para atendimentos de famílias onde os casos sejam considerados graves, mas também em atendimentos de casais e famílias com crianças. Sua argumentação contempla desde confusões conceituais até diferentes intenções entre um tipo de abordagem terapêutica e outro.
Gianfranco Cecchin, Gerry Lane e Wendel Ray se encontraram em 1992 para uma troca de experiências que acabou resultando em um novo conceito: “irreverência”. A proposta era, essencialmente, criar um bom antídoto contra a rigidez na abordagem terapêutica. Rigidez que assola desde o jovem terapeuta, que, à medida que escolhe seus caminhos, vai estabelecendo suas verdades, até o terapeuta experiente, que em nome do que construiu, se obriga a defender verdades talvez já obsoletas.
A postura (se é que posso chamar assim) irreverente, em relação às escolas e procedimentos terapêuticos, carregaria consigo a vantagem do germe da dúvida, fundamental para o estabelecimento de uma relação honesta com o cliente. Quando o terapeuta se permite duvidar de suas teorias, dizem os autores, permite simultaneamente ao cliente alguma mudança. Na verdade, para Cecchin e seus colegas, o que realmente importa é livrar-se da ilusão de controle.
Eles:
Se um cliente pede um conselho, por quê não dá-lo? Se uma situação de violência, abuso, suicídio requer uma intervenção autoritária, por quê não fazê-lo? Se o cliente vem em busca de um “expert”, por quê não oferecê-lo. Se querem um diagnóstico, por que não pode ser esta a solução?
A pergunta por trás das perguntas é a seguinte:
Como pode um terapeuta familiar recuperar parte de sua iniciativa sem cair no defasado modelo baseado na ilusão de poder e controle?
Segundo a argumentação dos autores, o poder e controle encontram-se no apego rígido à uma conduta específica do tipo “ou isto ou aquilo”, na qual, em nome da “coerência” abre-se mão de um número infinito de soluções possíveis e, talvez, bem mais úteis. A reverência (cega?) a uma escola ou procedimento seria engessante, é o que querem dizer. Esteja ela em harmonia com atitudes diretivas ou não.
Uma solução humana, acredito, pois:
“É tão impossível não ter uma hipótese como não comunicá-la”, dizem eles.
Mas, já que estamos todos aqui a correr do tal do poder e do controle, não haveria nos casos em que “se faz necessária” maior diretividade, (seja porque o cliente pede ou porque a situação exige), a possibilidade de uma solução ainda melhor?
Digo isso, porque mensurar o poder do qual nos investimos numa relação como essa é de uma dificuldade tremenda. Afinal, onde há mais poder embutido, no apego ao princípio da competência do cliente ou em dizer-lhe o que fazer?
Penso que alguns princípios devem, sim, servir como guia do processo terapêutico. Um deles penso ser fundamental: Autonomia.
Cecchin, Lane e Ray, não a discutem, mas duvido que não a tenham em conta.
No caso de um aconselhamento, por exemplo, existem duas possibilidades bem distintas: numa apresenta-se o conselho como um ponto de vista (mais um), ampliando as visões que o cliente tem sobre si mesmo; na outra como uma verdade que o cliente tem de aceitar se não quiser assumir o ônus de manter-se na posição em que está.
A linha é tênue e nossa tendência é a segunda.
Haja consenso ou não quanto aos reais motivos do descompasso entre uma coisa e outra, o fato é que parece que permanecemos às voltas com a incansável busca de uma teoria que consiga se adaptar à nossa prática.
O problema, penso eu, não é o de ainda não termos acertado as arestas entre elas. Estarmos dia a dia remoendo o assunto já é, de certa forma, um bom sinal. O que me preocupa, e é uma das importantes contribuições que nos fornece um autor como Ausloos, é não estarmos prontos ainda – ou quem sabe dispostos - a enxergar em nossa prática diária os inúmeros resquícios de modernidade que se apresentam como pós-modernos. Algo assim como um narrativista - em tese, pós-moderno desde o nascimento - empurrando “goela abaixo” narrativas mais positivas a uma família que não a tem.
Exemplo:
Um marido, em meio a uma série de reclamações em relação a sua esposa, diz considerá-la uma boa mãe.
Um terapeuta ocupado em estabelecer consenso, em resolver a situação recolheria rapidamente a consideração feita pelo marido, a colocaria numa posição de maior relevância em relação às outras e a repassaria à esposa como algo de importância inquestionável, como uma informação capaz de construir uma imagem nova a respeito de seu velho esposo. Frase possível: - Você percebe como ele lhe dá valor?
O terapeuta poderia ser considerado narrativista? Penso que sim.
Mas seria pós moderno? Penso que não, pois continua agindo de maneira intervencionista e de um lugar ainda privilegiado em relação ao casal, decidindo em última instância o que é mais importante ou deixa de ser para os dois.
Uma atitude pós-moderna daria mais espaço para que, por exemplo, a própria esposa decidisse se a afirmação do marido é relevante ou não para si. Frase possível: O que você pensa sobre a afirmação que seu marido fez sobre você?
Parece muita sutileza, mas a diferença estabelece sintonia ou não com a postura pós-moderna.
Reexaminar, portanto, conceitos como os de competência, impaciênciaterapêutica, informação pertinente, hipóteses, ativação do sistema talvez seja ainda fundamental, mesmo que tenham sido elaborados por um “último moicano”, para quem a linguagem, na época, ainda não se constituía como tema principal. O que penso é que se consideramos a pós-modernidade o passo necessário para uma abordagem construcionista, narrativista ou colaboracionista não há como abrir mão dessa postura.
BIBLIOGRAFIA
Anderson, Harlene. Conversación, Lenguage y Posibilidades – Um enfoque posmoderno de la terapia.Buenos Aires, 1999.
Ausloos, Guy. A Competência das Famílias: Tempo, Caos, Processo. Lisboa, 1996.
Cecchin, Gianfranco; Lane, Gerry e Ray, Wendel. Irreverencia. Uma estrategia de supervivencia para terapeutas.2002
Rapizo, Rosana. Terapia Sistêmica de Família: Da Instrução à Construção.Rio de Janeiro, 1996.
Stacey, R. D. The Chaos frontier: creative strategic control for business. Oxford: Butterworth Heinmann, 1991.
1]Ausloos (17) Introdução
[2]Ausloos (18) Introdução
[3]Ausloos (31)
[4]Ausloos (35)
[5]Ausloos (35-36)
[6] Stacey (ano de 1991)
[7]Ausloos (100)
[8]Ausloos (100-101)
[9]Ausloos (105)
[10]Ausloos (65)
[11]Ausloos (66)
[12]Ausloos (25)
[13]Ausloos (91-92)
[14]Ausloos (135)
[15]Ausloos (137)
[16] Ausloos (139)
[17] Todos os nomes dos familiares foram substituídos por nomes fictícios.
[18]HarleneAndenson (110-111).
[19]Ausloos (33)
[20]Ausloos (34)
[21]Rapizo (24-25)